O legado da Carta Testamento e a luta pelo socialismo do século XXI



De 1930 a 1964 a cena política brasileira foi dominada pelo embate sobre os rumos que o Brasil deveria tomar enquanto nação para tornar-se um país desenvolvido.

De 30 a 54 a figura política de Vargas aglutinou um campo político que defendia a necessidade de um projeto de nação brasileira baseado na independência política e econômica e com um caráter nacionalista burguês. Porém, com o desenrolar da luta política e principalmente após o suicídio de Getulio e a divulgação da Carta Testamento, esse campo modifica sua composição social e vai paulatinamente assumindo a necessidade de um desenvolvimento voltado para as maiorias, socializante e com um caráter nacionalista revolucionário.

Contrapondo-se a esse projeto, conformou-se um campo que inicialmente defendia o retorno ao poder político das oligarquias agro-exportadoras afastadas na chamada Revolução de 30 que, com o passar da luta política, também modifica sua composição e caminha para a defesa de um desenvolvimento associado e dependente do capital internacional, notadamente estadunidense.

Apesar da política brasileira nesse período não se resumir a esses dois campos, a luta política entre seus projetos históricos tendeu a uma radicalização que polarizou a sociedade brasileira.

Getulio foi a principal liderança pela implantação desse projeto de nação de caráter nacionalista burguês que visava conciliar os interesses do capital industrial e do trabalho para enfrentar a poderosa burguesia agro-exportadora aliada ao imperialismo. Setores poderosos que não perderam oportunidades de tentar retomar seus espaços políticos em vários momentos, como em 32 em São Paulo, nas eleições que ocorreriam em 37, no golpe que derruba Getulio em 45, nas eleições deste mesmo ano e na tentativa de golpe em 54, que foi impedido pelas manifestações populares após o suicídio de Getulio.

Paralelamente a esse enfrentamento, agudiza-se no campo político getulista as contradições inconciliáveis entre os interesses do capital industrial e do trabalhadores. A maior parte da burguesia industrial, que via com desconfiança a política e a legislação trabalhista defendida por Vargas, começa a ceder aos “encantos” econômicos do projeto de desenvolvimento associado e dependente ao capital internacional. Essas contradições se refletem na conjuntura de 1945, onde as forças que apoiavam Getulio não conseguem se unificar em uma única organização política, surgindo a partir dessa realidade o PSD e o PTB.

Após o desastroso governo entreguista e antipopular de Dutra, Getulio, que inicialmente havia se filiado ao PSD, ganha as eleições de 1950, como candidato do PTB e com o apoio das massas trabalhadoras que se debatiam em meio à miséria e a falta de perspectivas.

Com o objetivo de dar continuidade ao projeto histórico interrompido em 45, seu governo retoma e cria mecanismos, como o seguro agrário, o IBC (Instituto Brasileiro do Café), o Banco do Nordeste, a CACEX (carteira de comércio exterior) do Banco do Brasil e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) para incrementar uma política de estimulo às indústrias de base e a elevação da poupança interna.

Várias leis são sancionadas: lei sobre restrição da remessa de lucros das empresas estrangeiras para o exterior, a lei sobre crimes contra a economia popular, a lei que cria o monopólio estatal do petróleo através da Petrobrás e ainda é tentada a criação da Eletrobrás.

Após uma série de greves e mobilizações dos trabalhadores, o poder aquisitivo destes é garantido em face da inflação através de diferentes políticas sociais e do reajuste do salário mínimo de 100% proposto por João Goulart durante sua gestão no Ministério do Trabalho. Jango encaminhou a proposta mesmo sabendo que isso custaria o próprio cargo. Desde quando assumiu o Ministério sua prática de negociar e se antecipar às demandas dos trabalhadores, forçando, muitas vezes, os empregadores a fazer concessões, foi freqüentemente vista e denunciada pela oposição como uma maneira de "pregar a luta de classes".
Assim, Jango não era o ministro do Trabalho, mas o ministro dos trabalhadores. Para a oposição anti varguista Jango era um "manipulador da classe operária", "um estimulador de greves", "um amigo dos comunistas", que tinha como plano a implantação, com o assentimento de Vargas, de uma "república sindicalista" no Brasil.

Além de tudo isso, o governo Vargas participa de uma tentativa de retomar o Tratado do ABC, assinado em 1910 entre Brasil, Argentina e Chile, com o objetivo de buscar alternativas à condição de exportadores de matérias-primas e alimentos, apontando para a necessidade de uma maior integração latino-americana, com o intuito de fazer frente à hegemonia do imperialismo estadunidense na América Latina. Nas conversações mantidas com Perón, Vargas afirma que “Nossa Pátria é a América.”

Com a retomada de seu projeto, além da radicalização do campo opositor - hegemonizado pela burguesia agro-exportadora e cada vez mais aliado ao imperialismo americano - acirram-se as contradições com a maior parte da burguesia industrial, já seduzida pela lógica do capitalismo dependente. Em agosto de 54, Getulio está isolado politicamente, pois as massas trabalhadoras estavam atônitas e desnorteadas perante o ataque brutal da oposição ao seu governo, apoiado nos grandes meios de comunicação de massa.

Prestes a sofrer um golpe militar, Getulio suicida-se.

O suicídio não obedece a uma lógica de desespero, mas reflete o ato de uma liderança política consciente do momento histórico, de seu papel junto às massas trabalhadoras e do seu projeto histórico. Getulio constata o esgotamento da possibilidade de dar continuidade ao seu projeto nacionalista burguês, baseado na política de conciliação entre capital industrial e trabalho, em plena consolidação do imperialismo estadunidense na América Latina.

Com a divulgação da Carta Testamento, Getúlio entra para a história protagonizando o ato fundador de uma nova continuidade de seu projeto de nação em uma lógica antiimperialista e popular, que vai pautar uma reaproximação pela base de trabalhistas, socialistas e comunistas na década seguinte, dando conteúdo ao crescimento vertiginoso do PTB e de suas frações pela esquerda a partir da mobilização popular pela Legalidade e da ascensão da organização popular nas lutas pelas reformas de base no inicio da década de 60.

Em 64, a contra-revolução das classes dominantes aliadas ao imperialismo impediu que o povo trabalhador avançasse em sua revolução democrática rumo ao socialismo. Após a ditadura, nenhum dos governos eleitos ousou sequer questionar a lógica do desenvolvimento associado e dependente do capital internacional imposta à nação brasileira pelas burguesias agro-exportadora e industrial associadas ao imperialismo desde o golpe militar.

Hoje, passados 55 anos, a denúncia e o chamamento à luta da Carta Testamento continuam atuais e são um legado às forças populares, antiimperialistas e classistas.

Devem ser considerados como um chamado para que essas forças tenham a clareza e a coragem necessárias para romper com a falsa polarização petucana e retomar o fio da história das lutas do povo trabalhador, cortado pela contra-revolução de 64.

Um chamamento para que assumam claramente a retomada de um projeto popular de nação baseado na independência política e econômica e na libertação nacional e social de nosso país como um caminho brasileiro para o socialismo do século XXI.

Aurelio Fernandes
Educador Popular com formação em História e membro da Coordenação Nacional do Movimento Revolucionário Nacionalista – Círculos Bolivarianos / MO.RE.NA-CB.



Carta Testamento
Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores de trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançaram até 500% ao ano. Na declaração de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história

Getúlio Vargas

Comentários

Postagens mais visitadas