Nós por nós ou vence a morte. As favelas vão pagar para ver?
As favelas e a pandemia do coronavírus.
Grotas, invasões, palafitas,
comunidades, mocambos, alagados, favelas. São muitos os nomes usados em todo o
país para designar o que o IBGE denomina de “aglomerados subnormais” que se
multiplicaram durante anos pelas cidades brasileiras.
De acordo com dados de 2005 da
UN-HABITAT, uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU), 26,4% da
população urbana brasileira viviam em favelas. Em 2006, um relatório divulgado
pela ONU apontou uma estimativa de que o Brasil terá cerca de 55 milhões de
pessoas morando em favelas em 2020, o que equivaleria a 25% da população do
país. Segundo o Censo 2010 do IBGE, o Brasil tinha cerca de 11,4 milhões de
pessoas morando em favelas e cerca de 12,2% delas (ou 1,4 milhão) estavam no
Rio de Janeiro.
Os grandes meios de comunicação
de massas - impressos e virtuais – só lembram das favelas nos momentos de
tragédia, sejam elas anunciadas ou não. Violência urbana, chuvas seguidas de
deslizamentos, pandemias ou endemias...
Nesses momentos, as favelas são
lembradas pelos mortos - prováveis ou concretos, que não podem ser empurrados
para debaixo de estatísticas que escondam a dura realidade de miserabilidade
das favelas ou pelas “consequências ruins” que causam as cidades.
E nessas horas, a “culpa” é direcionada
às trabalhadoras e aos trabalhadores favelados que, “por malandragem” optam por
morar perto de seus trabalhos para “economizar” em àgua, luz, gás, transportes,
etc. Sobram criminalização, a matança e a estereotipação sobre esses territórios,
e as trabalhadoras e os trabalhadores moradores das favelas são nomeados de “classes perigosas”.
O cenário será diferente para a pandemia do coronavírus?
Manchete de domingo no jornal “O
Globo”: “DESAFIO DA CONTENÇÃO
MORADIAS PRECÁRIAS ACENDEM SINAL DE ALERTA PARA CONTROLE DO CORONAVÍRUS.”
Será que seguidos governos desconheciam
a realidade de nossas favelas, periferias e bairros populares onde moram em torno
de 25% da população brasileira? Não poderiam ter resolvido esses problemas que são
continuamente relembrados quando dessas tragédias anunciadas?
Durante anos os governantes,
identificados com os lucros dos planos de saúde e com a diminuição dos gastos
públicos para cumprir com os pagamentos das dívidas públicas com os bancos,
destroem o Sistema Único de Saúde - SUS. Para isso, o Congresso Nacional
aprovou a Emenda Constitucional 95/2016 que congelou os gastos com saúde e
educação por 20 anos.
Assim, só como um exemplo, nos
últimos anos as redes municipais e estadual de saúde no Rio de Janeiro sofreram
com a redução de leitos. Na atenção básica, fundamental para o combate a
pandemias em áreas populares, a capacidade de atendimento da rede de Saúde da
Família, no mesmo período, caiu 17%, e a cobertura, que era de 70% da cidade,
passou a 53%.
Há décadas que os Governos
Federal, Estaduais e Municipais tem conhecimento de que as favelas, cheias de
becos e residências pequenas, sem entradas de luz solar ou circulação de ar,
favorecem a proliferação de doenças respiratórias. Em 2019, a taxa de
tuberculose nos habitantes das favelas foi cinco vezes mais alta que a média
nacional.
Toda a sociedade brasileira sabe
que trabalhadoras e trabalhadores favelados vivem em condições abaixo do padrão
de qualidade de vida aceitável - sem boa água, luz, esgoto encanado. Sem áreas
de lazer, ou mesmo ruas. Até quando conquistam, depois de muita luta, projetos
governamentais de urbanização, as favelas sofrem um tratamento diferenciado. A
coleta de lixo é deficiente. A manutenção do sistema de água e esgoto também é
deficiente; igualmente o sistema viário e os transportes. As concessionárias da
Prefeitura não oferecem o mesmo tratamento para as favelas e o “asfalto”. Os
problemas relativos à geração de renda não são atacados e nem o aspecto
educacional e cultural. As consequências desta realidade é a violência que
atinge majoritariamente a infância e a juventude favelada.
Toda essa realidade tem relação
direta com o fato da nossa força de trabalho ser remunerada abaixo do que
necessitaríamos para uma qualidade de vida saudável. A maioria que vive nas
favelas pertence à metade mais pobre da população, quase 104 milhões de
brasileiros, que vivem com apenas R$ 413 mensais, considerando todas as fontes
de renda. Se considerados os 30% mais pobres, o equivalente a 60,4 milhões de
pessoas, a renda média per capita subiria a apenas R$ 269. Só para compararmos,
em 2019 o salário mínimo compatível com os gastos básicos das trabalhadoras e
trabalhadores no Brasil deveria ser de R$ 4.347.61. Ou seja, 4,8 vezes maior
que o atual salário mínimo de R$1.039,00.
Some-se a isso o prolongamento das
jornadas de trabalhos de todos para além dos limites normais – uso recorrente
de horas extras; necessidade de mais de um emprego para o sustento; contingente
trabalhando por decisão não voluntária após idade para se aposentar e ao
aumento da intensidade do trabalho além das condições normais –, que tem um de
seus indicadores aproximados na ocorrência de acidentes de trabalho, incluindo
doenças laborais, invalidez e mortes no ambiente de trabalho. O Brasil, a
propósito, é um dos campeões mundiais de acidentes de trabalho/doenças
laborais, ocupando a 4ª posição.
Como manter, em tais condições, as
orientações para a contenção da transmissão comunitária do COVID 19? Como manter
a higiene sem agua potável, com esgoto sanitário deficiente e muitas vezes a
céu aberto? Como conseguir isso em espaços cheios de becos e residências
pequenas, muitas vezes superlotadas e sem entradas de luz solar ou circulação
de ar? Como fazer isso, vivendo em uma desigualdade crescente que impede as
trabalhadoras e trabalhadores das favelas de ganhar um salário que permita uma
qualidade de vida saudável?
Toda essa realidade vai
consumindo nossa energia vital e provocando um desgaste prematuro de nossos
corpos e mentes, o que facilita nosso adoecimento. Fica óbvio que as
trabalhadoras e trabalhadores das favelas serão os mais atingidos pela disseminação
do COVID – 19.
Nós por nós ou vence a morte.
Para combater o avanço do novo
coronavírus, o governo federal avalia que a “melhor solução” hoje é utilizar
navios para isolar e tratar pessoas de baixa renda infectadas pela doença.” Ou
seja, os familiares das trabalhadoras e trabalhadores das favelas serão
embarcados em navios. “O Ministério da Saúde considera promissora a aplicação
da ideia no Rio, o segundo Estado com o maior número de infectados. Cerca de
1,5 milhão de pessoas vivem no Rio espalhadas em mais de 700 comunidades.
Outra medida é a quarentena
compulsória. Não surpreenderia - caso a proliferação do COVID 19 não seja
contida - que as favelas sejam cercadas pela polícia e/ou as Forças Armadas,
colocando toda a favela em quarentena e impedindo a saída dos moradores.
As trabalhadoras e os trabalhadores
favelados sabem qual seria a solução para podermos enfrentar essa realidade: há
muitos anos, muitos de nós lutamos cotidianamente por uma reforma urbana que
garanta a posse e condições de moradia aliadas a uma política popular de urbanização
- educação, saúde, melhor qualidade de vida, etc, o que nunca interessou aos
que exploram nossas energias, nossa força de trabalho para ficarem mais ricos.
A questão que se coloca para as
trabalhadoras e os trabalhadores das favelas é: vamos pagar para ver? Ou as
trabalhadoras e os trabalhadores das favelas se organizam para se defender ou
serão tratados como gado indo para o matadouro. Será que um caminho não seria a
organização de comitês de autodefesa onde as favelas lutem para garantir o direito
a vida? Mobilizar para exigir uma serie de reinvindicações necessárias a sobrevivência?
Nas favelas somente protegeremos
nossas saúdes protegendo a saúde de todos. Os comitês de autodefesa podem ser
organizados de acordo com a realidade de cada local, sendo que o mais
importante é a mobilização da população favelada para que consigam exigir dos
governos e da sociedade:
- distribuição gratuita nas favelas máscaras, álcool gel em 70%, sabonetes, além de garantir agua potável;
- renda mínima para as trabalhadoras e os trabalhadores das favelas, pois não existem reservas para enfrentar uma situação como essa;
- oposição a qualquer tentativa de quarentena militarizada;
- utilização de igrejas, sedes de clubes, de escolas de samba e outros espaços nas favelas e próximos para hospitais de campanha;
- uso de quartos de hotéis e unidades habitacionais não utilizadas e/ou ainda não entregues para a quarentena dos infectados das favelas;
- mobilização das equipes de Agentes Comunitários de Saúde nas favelas, com exigência de recursos para seu funcionamento com voluntários, a serem treinados por essas equipes para assumir tarefas no combate ao COVID 19 nas favelas;
- atenção especial para as famílias das favelas – em caso de isolamento doméstico, muitas precisarão receber alimentação e atenção psicossocial;
- isenção do pagamento de contas de agua, luz e telefones.
- 1,5 salário mínimo mensal aos trabalhadores intermitentes, MEI e sem carteira assinada das favelas que tiverem que deixar suas obrigações em decorrência da quarentena.
- apoio financeiro a pequenas e microempresas das favelas.
- exigir o fim da EC95/2016 que congelou os gastos com saúde e educação por 20 anos – nossa vida é mais importante do que os juros da dívida para milionários;
- taxação das grandes fortunas;
- redução dos preços dos combustáveis;
- nacionalização dos hospitais particulares que deverão ser geridos pelo SUS;
- compra e distribuição em toda a rede hospitalar de remédios produzidos em Cuba e já utilizados com sucesso no combate ao COVID19;
- licença remunerada e estabilidade no emprego;
- denúncia contra qualquer forma de discriminação – contra as favelas, bairros populares ou contra pobres, negros, mulheres, LGBTs!
Só resta continuar aprofundando a
luta!!!!
[1] Professor
de História, militante dos Círculos pela revolução brasileira e do Centro Ruy
Mauro Marini. Foi assessor da FAF Rio e da FAFERJ e dirigente do MTST.
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