Lula III e os Limites da Conciliação: governabilidade ou
rendição de classe?
O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência em 2023
representou, para muitos, uma vitória da democracia contra o autoritarismo
bolsonarista. A derrota eleitoral da extrema-direita reacendeu esperanças na
reconstrução nacional. Mas, passado o impacto simbólico da vitória, uma questão
estrutural permanece: qual o projeto político efetivo em curso? E,
principalmente, quais são os limites do caminho escolhido?
Desde o início, o terceiro governo Lula se estruturou em
torno de uma ampla aliança com setores da direita liberal, do centrão
fisiológico e até do agronegócio. Essa composição visou garantir
“governabilidade” diante de um Congresso conservador e de um Judiciário
comprometido com a ordem neoliberal. O preço, porém, é alto: para manter esse
pacto, o governo renunciou a qualquer enfrentamento significativo com os
interesses da classe dominante.
A escolha do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não foi
por acaso. Coube a ele acalmar os mercados e garantir o compromisso com a
“responsabilidade fiscal”. A aprovação do novo arcabouço fiscal, que limita os
investimentos públicos em nome do equilíbrio orçamentário, deixou claro que o
combate à desigualdade será feito — se for — com as migalhas que sobrarem da
mesa dos rentistas.
Enquanto isso, a taxa de juros real segue entre as mais
altas do mundo, beneficiando o setor financeiro e travando o crescimento. O
governo, mesmo com críticas pontuais ao Banco Central independente, não
enfrenta diretamente o poder do capital. Ao contrário: negocia com ele, tenta
conciliar.
Nas políticas sociais, houve sim retomada de programas
importantes, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. Mas sem uma
política tributária que taxe as grandes fortunas ou enfrente os privilégios da
elite, essas ações têm limites claros. O Estado continua arrecadando dos pobres
para manter os lucros dos mais ricos.
A reforma tributária aprovada em 2023, embora apresente
avanços técnicos, foi moldada para não tocar nos ganhos da burguesia. A taxação
de lucros e dividendos segue indefinida, e o imposto sobre grandes fortunas nem
sequer entrou em pauta. O discurso de modernização fiscal, nesse caso, disfarça
a preservação dos interesses do andar de cima.
No campo, o agronegócio permanece blindado. O governo segue
financiando o latifúndio com crédito subsidiado, enquanto o MST e outros
movimentos do campo enfrentam perseguição midiática e criminalização. A reforma
agrária estrutural, que poderia desconcentrar terras e democratizar a produção
de alimentos, segue congelada.
Na política ambiental, há avanços pontuais e simbólicos,
como a retomada do Fundo Amazônia. No entanto, a liberação de agrotóxicos
continua em ritmo acelerado, e os projetos de mineração em terras indígenas
seguem em tramitação. O governo tenta agradar ambientalistas e ruralistas ao
mesmo tempo — o que, na prática, significa ceder aos segundos.
Na educação e na cultura, houve uma importante retomada de
investimentos e políticas públicas. Mas, mesmo nesses campos, o governo evita
qualquer enfrentamento mais direto com os setores conservadores e muitas vezes
assume suas pautas. A diretriz geral é a mesma: evitar conflito, manter a
pacificação, conter o avanço da extrema-direita sem tocar nas estruturas que a
alimentam.
Essa estratégia de conciliação, no entanto, carrega um
problema central: ela não desarma a ofensiva neoliberal, apenas a adia. Ao
evitar rupturas e se adaptar à lógica do sistema, o governo corre o risco de
repetir o ciclo de frustrações do passado — aquele que preparou o terreno para
o antipetismo e o bolsonarismo.
Do ponto de vista revolucionário, o papel de um governo
popular não deve ser administrar a crise capitalista com “mais diálogo”, mas
construir poder popular para enfrentar o capital. A política, como dizia Martha
Harnecker, é a arte de tornar possível o impossível — mas isso exige mobilização
de base, organização autônoma da classe trabalhadora e enfrentamento ideológico
direto com a hegemonia burguesa.
O atual governo, ao optar pela conciliação como princípio,
limita sua capacidade de transformar. Será que tem esse desejo? Ao invés de
formar consciência de classe, reforça o discurso da unidade nacional — como se
fosse possível conciliar o trabalhador sem-terra com o latifundiário, ou o
operário precarizado com o banqueiro rentista.
A esquerda institucional, quando absorvida por essa lógica,
se distancia da luta concreta do povo. Em vez de ser ponte entre o movimento de
lutas da classe trabalhadora e o enfrentamento ao Estado burguês, vira
amortecedor entre a pressão social e os interesses do capital. E isso abre
espaço para a desilusão, o ceticismo político e o retorno de forças
reacionárias.
O desafio, então, não é “melhorar” a conciliação, mas
superá-la. Não se trata de torcer contra o governo Lula, mas de reconhecer seus
limites e agir de forma autônoma. A esquerda radical precisa fortalecer seus
instrumentos próprios de organização — sindicatos combativos, movimentos de
base, partidos com clareza ideológica — e disputar a consciência política da
classe trabalhadora.
Sem independência de classe, qualquer avanço será frágil. A
história do Brasil recente é prova disso. Só a mobilização do povo pode
sustentar conquistas e abrir caminho para transformações mais profundas.
Esperar que o Estado burguês, mesmo gerido por um governo progressista, vá
resolver os problemas estruturais do país, é apostar numa ilusão.
O possível não se realiza com gestos simbólicos ou
negociações de gabinete. Realiza-se quando o povo organizado impõe sua força
histórica. Se quisermos de fato transformar o Brasil, será preciso ultrapassar
a conciliação — e enfrentar os interesses da classe dominante com coragem
política, clareza ideológica e ação coletiva.
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