João Goulart, Brizola e o Anti-imperialismo: Lições de um Projeto Interrompido

Por Aurelio Fernandes

O golpe de 1964 no Brasil ocorreu em um contexto de intensa disputa aberta entre projetos de conciliação e a necessidade histórica de ruptura. Durante esse período, houve confronto entre diferentes interesses, envolvendo potências internacionais, setores da sociedade civil e propostas diversas para o desenvolvimento do país. O governo de João Goulart expressou, em seus limites a tentativa de reformar o país sem romper com a dependência ao imperialismo. O processo resultou na deposição do governo por uma aliança composta por setores das Forças Armadas, grupos econômicos nacionais e internacionais, além de apoio do Departamento de Estado dos EUA.

O imperialismo, como já definira Lenin, não é apenas política externa agressiva, mas expressão da concentração e exportação do capital, de um sistema de dominação econômica, política e militar das grandes potências sobre as nações periféricas. Na América Latina, isso sempre significou subordinação das economias locais, dependência tecnológica, pilhagem dos recursos naturais, repressão aos movimentos populares e uma “classe dominante” local cúmplice, disposta a trair qualquer possibilidade de autonomia nacional em nome de seus próprios privilégios.

João Goulart, herdeiro do trabalhismo de Vargas, nunca foi um revolucionário. Oriundo de setores da oligarquia gaúcha, sua política se orientava pelas margens do possível, tentando negociar entre frações burguesas e responder, ainda que de modo controlado, à pressão das massas. O programa das Reformas de Base — reforma agrária, urbana, educacional, fiscal, controle das remessas de lucros — expressava um diagnóstico correto da dependência, mas não apontava para sua superação efetiva. Seu projeto era o da modernização capitalista com distribuição limitada de direitos e manutenção da ordem, buscando conciliar latifundiários, industriais nacionais e o crescente movimento operário.

O anti-imperialismo de Jango foi, assim, limitado e contraditório. Propôs limitar remessas de lucros ao exterior, pressionou por maior participação estatal em setores estratégicos, mas nunca rompeu com as amarras da dependência nem com o latifúndio. A mobilização popular, especialmente a partir de 1963, encontrou resposta feroz: sabotagem econômica, terrorismo midiático, conspiração militar e intervenção direta dos EUA — comprovada pelos documentos desclassificados e pela presença da “Operação Brother Sam”, pronta para desembarcar tropas caso o golpe encontrasse resistência.

No mesmo cenário, a relação entre João Goulart e Leonel Brizola ilustra dois caminhos distintos dentro do campo nacionalista diante do imperialismo. Ambos partilhavam a crítica à dominação estrangeira e à submissão das elites locais, mas divergiam no método e na radicalidade das respostas.

Enquanto Jango hesitava entre a conciliação das classes e as pressões crescentes do movimento popular, Brizola radicalizava o discurso e a prática anti-imperialista. Para Brizola, o enfrentamento ao imperialismo não se limitava a reformas ou à negociação de direitos, mas exigia uma ruptura real, de massas, ancorada na mobilização popular e com perspectiva socialista.

Na voz de Brizola ecoava o entendimento de que a questão latino-americana era, antes de tudo, uma questão de libertação nacional:
“O problema latino-americano tem de ser concebido como um problema de libertação nacional. (...) É imperativo que a revolução encontre soluções socialistas. E não é uma questão de escolher uma doutrina de um livro. Somente as soluções socialistas é que permitem a defesa dos povos contra o imperialismo.”

Sua atuação durante a Campanha da Legalidade exemplifica o papel central da mobilização popular armada para garantir a soberania nacional, em contraste com a aposta janguista na institucionalidade e nas soluções negociadas:
“Tornou-se necessário que o próprio povo, em impressionante unidade, se mobilizasse de fuzil na mão para que fosse respeitado o direito de o então vice-presidente assumir a Presidência. Foi preciso, enfim, que a nação se visse colocada diante do dilema: guerra civil ou posse ao Senhor João Goulart.”

Brizola era categórico ao afirmar que a força do povo organizado seria o único antídoto ao controle imperialista:
“(...) a organização do nosso povo, eis a tarefa imprescindível, nesse momento. Povo desunido, povo desorganizado é povo submetido, sem condições de defender seus interesses e de realizar seu próprio destino. Se conseguirmos estruturar uma organização razoável estarão criadas as condições para que o nosso povo venha a assumir uma posição não apenas de defesa de suas liberdades, mas, também, para caminhar para si mesmo, em sua própria libertação.”

Diferente de Jango, que oscilava entre reformas limitadas e negociações com setores da burguesia, Brizola apostava na confiança inabalável na capacidade de luta das massas. Para ele, qualquer mudança real dependia da disposição de enfrentar abertamente o imperialismo, pela via da luta popular organizada, como expressa nesta afirmação:
“(...) eu afirmo que o futuro é nosso, do nosso povo, e de nosso País, nessa luta de libertação. E embora considere possível que a lição de tantos erros conduza nosso Governo a uma revisão de seus rumos, devo dizer que é no povo, na sua organização e na sua capacidade de luta que devemos depositar a nossa fé.”

O golpe de 1964 selou a vitória do imperialismo e da reação burguesa sobre a possibilidade de uma via reformista nacional. Veio o ciclo de ditaduras militares, aprofundou-se a dependência, acelerou-se a transferência de riquezas ao exterior e o movimento popular foi submetido a duas décadas de terror e perseguição.

A esquerda, nesse processo, também foi vítima de suas próprias ilusões: o apoio crítico ao governo Goulart e a aposta numa aliança com setores “progressistas” da burguesia resultaram em desarme político e organizativo do proletariado. Faltou independência de classe e direção revolucionária. As massas mobilizadas não encontraram um partido capaz de apontar o caminho da ruptura, da tomada do poder e da transformação radical das estruturas do Estado e da economia.

A lição do janguismo é amarga, mas necessária. Não há soberania nacional possível sob o capitalismo dependente. O anti-imperialismo consequente, na América Latina, exige ruptura revolucionária com as classes dominantes locais, organização independente dos trabalhadores, construção do poder popular e orientação socialista do desenvolvimento. As tentativas de conciliação e reformismo servem, no limite, apenas para adiar — e, por vezes, facilitar — a ofensiva do imperialismo e das elites nativas.

A luta anti-imperialista segue atual. A cada ofensiva do capital financeiro internacional, a cada ataque aos direitos, a cada projeto de privatização e entrega das riquezas nacionais, reafirma-se a necessidade de unidade da classe trabalhadora da cidade, do campo e das florestas para construir um novo caminho: libertação nacional, poder popular e socialismo.

 

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