O Legado de Vargas

O legado de Vargas e o projeto de poder popular das maiorias.

Para os navegantes com desejo de vento a memória é um ponto de partida.
Eduardo Galeano

É profanação o esquecimento vergonhoso dos mortos
José Marti

Muitos lutadores e lutadoras sociais negam que exista um legado de Vargas para as lutas pela libertação nacional e social do povo trabalhador brasileiro. Baseados numa visão eurocêntrica da história das lutas de classe no Brasil e na América Latina acabam por reduzir esse legado a um questionável conceito de populismo, a corporativismo sindical e a um controle e cooptação dos trabalhadores a partir de mecanismos jurídicos e legislativos.

Reduzem as ações políticas dos trabalhadores identificados com o legado de Vargas a uma conspiração(sic) das classes dominantes para desvirtuar o povo trabalhador de seus “reais” e “verdadeiros” interesses de classe. Não conseguem vê-las como manifestações políticas legitimas de uma parcela significativa dos trabalhadores brasileiros que extraíram da Era Vargas os recursos necessários às suas reivindicações, lutas e ao fortalecimento de suas noções de dignidade e justiça social.

A Era Vargas começa com a revolução de 30, cuja liderança de Vargas é inquestionável. O governo que surge desse fato histórico reconheceu os trabalhadores na cena política e, com isso, intensificou o processo de acumulo de experiências nas lutas cotidianas pela reivindicação de seus direitos, que é brutalmente interrompido em março de 1964, quando o povo trabalhador aumenta sua compreensão tanto acerca de quem são os seus inimigos como de seu próprio papel para transformar a história.

Em 1930, o Governo constitucional de Getúlio Vargas cria o Ministério do Trabalho e o povo trabalhador é reconhecido pelo Estado como cidadão. A questão social não é mais vista pelo governo como uma questão de polícia, mas de política. Assim, com o avanço da organização sindical, como resultado de muitas greves e mobilizações, os direitos trabalhistas são reconhecidos em leis e ampliados para a totalidade dos trabalhadores. A burguesia boicota as leis trabalhistas das mais variadas formas e a diferença entre o que estava escrito nas leis e a realidade nos locais de trabalho faz com que ocorram muitas mobilizações e greves durante a década de 30. Daí a pressão da burguesia sobre Vargas que leva a implantação do Estado Novo em 1937 e que, no entender das mesmas, seria instalado, como resposta definitiva à luta de classes e à "desordem social".

Em 1943, ao perceber que o Estado Novo não atendia aos seus interesses imediatos e particulares, essa mesma burguesia assume claramente uma oposição - liberal, anti- trabalhista e associada aos interesses imperialistas dos EUA - a Vargas. Como resposta, Vargas lança, em 1943, uma campanha pró-sindicalização maciça e o imposto sindical. O empresariado denuncia o imposto sindical como um instrumento de agitação grevista. Getulio institui a Consolidação das Leis do Trabalho, que unifica as leis trabalhistas que estavam dispersas, e a Justiça do Trabalho. Teoricamente, CLT e Justiça do Trabalho permitiriam um controle maior sobre a aplicação das leis trabalhistas. No cotidiano fica claro a distância entre o que afirmavam as leis e a realidade dos trabalhadores em seus locais de trabalho. A partir daí, retoma-se a mobilização nos sindicatos e as reivindicações.

Ao contrário do desejo do capital e do imperialismo, o Estado Novo desintegra-se na maior mobilização popular da década em defesa dos direitos trabalhistas e da candidatura de Vargas à presidência. Os trabalhadores assistem os candidatos a presidência do PSD e da UDN defenderem a "flexibilização" das leis trabalhistas e Vargas ser impedido de se candidatar por um golpe palaciano apoiado explicitamente pela burguesia e o governo norteamericano. Ainda assim essas mobilizações populares levam à organização do Partido Trabalhista Brasileiro e garantem na Constituição de 46 que os direitos trabalhistas, a Justiça do Trabalho e a estrutura sindical fossem reconhecidas pelos constituintes.

O governo Dutra, eleito com o tímido apoio de Vargas e com a desconfiança do povo trabalhador, caracteriza-se pela perseguição ao movimento sindical e a política de submissão aos interesses do capital e do imperialismo americano.

Assim em 1950, com votação consagradora, Getúlio Vargas se elege presidente pelo PTB. Vargas retoma o diálogo do governo com o movimento sindical, praticamente dobra o salário mínimo em valores reais e assume uma lógica nacionalista cada vez mais radical. Impõe sérias restrições à remessa de lucros das multinacionais para o exterior e ao capital estrangeiro que, para entrar no país, deveria estar associado a capitais nacionais. Investe na criação da Petrobrás e da Eletrobrás entendendo serem empresas estatais fundamentais para diminuir a dependência do Brasil em relação ao capital internacional e para estimular o desenvolvimento nacional. Não aceita participar com tropas do conflito na Coréia e se aproxima dos governos da Argentina e do Chile com o objetivo de iniciar um processo de integração latino-americano frente ao imperialismo americano. Afirma em reunião com Perón que “Minha Pátria é Nossa América”.

Para a burguesia brasileira e para o imperialismo americano esses são posicionamentos imperdoáveis e se desencadeia uma onda de difamações nos meios de comunicação que criam um clima de golpe. Acuado por seus inimigos, entre a rendição ao capitalismo possível integrado e entreguista e a impossibilidade de implementar seu projeto de um capitalismo autônomo e não subordinado aos interesses internacionais, Vargas, não vê outra saída política a não ser o suicídio.
A Carta Testamento é o maior dos legados de Vargas. Uma veemente denúncia dos interesses das multinacionais e do imperialismo. Deixa para as próximas gerações a clara orientação de que a libertação nacional e social não é possível nos limites impostos pelo capital aos países dependentes. Os milhões de trabalhadores indignados que saem às ruas no dia seguinte ao seu suicídio, atendendo ao chamado de sua Carta Testamento, impedem a tentativa de golpe em marcha que só se consumará em 1964.

A Era Vargas, portanto, não foi uma amarra diluidora da ação dos trabalhadores, mas um elemento formador de sua cultura e experiências cujo legado rompeu e ultrapassou a lógica de tentativas de cooptação política. A cultura política dos trabalhadores apropriou-se desse legado de acordo com suas experiências, expectativas e sobretudo, com os avanços na sua consciência de classe, operando deslocamentos em seus significados e propósitos originais.

Um projeto histórico de poder popular das maiorias em nosso país tem de reconhecer a "palavra operária e popular" na lógica de solidariedade que prevaleceu na mobilização política do povo trabalhador em torno a esse legado. Um legado que continuou com as posturas antiimperialistas de Jango e foi aprofundado em uma ótica nacionalista revolucionária com Brizola.

Aqueles lutadores e lutadoras sociais que, esquecem a importância de se resgatar o fio da história do passado de lutas do povo trabalhador em seus projetos estão condenados a repeti-la como farsa. A crise política por que passa o PT, que sempre negou resgatar esse legado dos trabalhadores, assim como o raquitismo político dos agrupamentos que romperam com o PT, mas não com a miopia histórica do sectarismo petista, são as constatações dessa realidade.

Os lutadores e lutadoras sociais de nosso país não podem ficar prisioneiros dessa lógica. Tem de superá-la apostando na retomada do fio da história, que só será possível com a construção de uma ampla frente política antiimperialista que na luta popular e classista se transforme no instrumento político do projeto histórico de poder popular das maiorias em direção ao socialismo.
Retomado o fio nos restará fazer história...
Aurelio Fernandes

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