Por que não querem o funcionamento da Comissão da Verdade?

Descobri em meio aos meus arquivos esse texto que escrevi em 2012...

Por que não querem o funcionamento da Comissão da Verdade?
Memórias do Golpe ou Golpe na memória?

Aurelio Fernandes*
02/04/2012
Um refúgio? Uma barriga?
Um abrigo onde se esconder quando estiver se afogando na chuva, ou sendo quebrado pelo frio, ou sendo revirado pelo vento?
Temos um esplêndido passado pela frente ?
Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida.
Eduardo Galeano

O que as vitórias tem de ruim é que elas não são definitivas.
O que as derrotas tem de bom é que elas não são definitivas.
José Saramago



Um professor preso nos primeiros momentos da ditadura ouviu de um velho oficial do exército que o interrogava a seguinte afirmação: Nós viemos acabar com a bagunça que vocês começaram em 1930! O significado dessa afirmação é emblemático. O apreço dos donos do poder econômico no Brasil - banqueiros, latifundiários e empresários aliados aos interesses imperialistas dos EUA - pelo reconhecimento do direito à cidadania da maioria negra e mulata de nosso povo trabalhador que se intensifica com a chamada revolução de 30 é um mito de consequências muito graves e que se materializou brutalmente em vários momentos de nossa história. O Golpe de 64 talvez tenha sido o mais dramático desses momentos.

A revolução de 30 reconheceu os trabalhadores na cena política e, com isso, intensificou o processo de acumulo de experiências nas lutas cotidianas pela reivindicação de seus direitos, que é brutalmente interrompido em março de 1964, quando o povo trabalhador aumenta sua compreensão tanto acerca de quem são os seus inimigos como de seu próprio papel para transformar a história. De 1930 a 1964 vários foram vários esses momentos de aprendizado na luta.

Em 1930, o Governo constitucional de Getúlio Vargas cria o Ministério do Trabalho e o povo trabalhador é reconhecido pelo Estado como cidadão. A questão social não é mais vista pelo governo como uma questão de polícia, mas de política. Assim, com o avanço da organização sindical, como resultado de muitas greves e mobilizações, os direitos trabalhistas são reconhecidos em leis e ampliados para a totalidade dos trabalhadores. A burguesia liberal e capitalista boicota as leis trabalhistas das mais variadas formas e a diferença entre o que estava escrito nas leis e a realidade nos locais de trabalho faz com que ocorram muitas mobilizações e greves durante a década de 30. Daí a pressão das classes dominantes sobre Vargas para a implantação do Estado Novo em 1937 que, no entender das mesmas, seria instalado, como resposta definitiva à luta de classes e à "desordem social".

Em 1943, ao perceber que o Estado Novo não atendia aos seus interesses imediatos e particulares, os donos do poder econômico assumem claramente uma oposição - liberal, anti- trabalhista e associada aos interesses imperialistas dos EUA - a Vargas. Como resposta, o Estado Novo lança, em 1943, uma campanha pró-sindicalização maciça e o imposto sindical. O empresariado denuncia o imposto sindical como um instrumento de agitação grevista. O Estado Novo institui a Consolidação das Leis do Trabalho, que unifica as leis trabalhistas que estavam dispersas, e a Justiça do Trabalho. Teoricamente, CLT e Justiça do Trabalho permitiriam um controle maior sobre a aplicação das leis trabalhistas. No cotidiano fica claro a distância entre o que afirmavam as leis e a realidade dos trabalhadores em seus locais de trabalho. A partir daí, retoma-se a mobilização nos sindicatos e as reivindicações.

Ao contrário do desejo das classes dominantes, o Estado Novo desintegra-se na maior mobilização popular da década em defesa dos direitos trabalhistas e da candidatura de Vargas à presidência. Os trabalhadores assistem os candidatos das classes dominantes defenderem a "flexibilização" das leis trabalhistas e Vargas ser impedido de se candidatar por um golpe palaciano apoiado explicitamente pelos donos do poder econômico. Ainda assim essas mobilizações populares levam à organização do Partido Trabalhista Brasileiro, a legalização do PCB e garantem na Constituição de 46 que os direitos trabalhistas, a Justiça do Trabalho e a estrutura sindical fossem reconhecidas pelos constituintes.

O governo Dutra, eleito com o tímido apoio de Vargas e com a desconfiança do povo trabalhador, caracteriza-se pela perseguição ao movimento sindical e a política de submissão aos interesses da burguesia brasileira associada ao imperialismo americano.

Assim em 1950, com votação consagradora, Getúlio Vargas se elege presidente pelo PTB, derrotando mais uma vez o candidato da UDN. Seu governo reinicia o diálogo do governo com o movimento sindical e aumenta o salário mínimo em valores reais e retoma uma lógica nacionalista. Para os donos do poder econômico esses são “erros” imperdoáveis que desencadeiam uma onda de difamações nos meios de comunicação que criam um clima de golpe que leva Vargas ao suicídio em 1954. Os milhões de trabalhadores indignados que saem às ruas no dia seguinte ao seu suicídio, atendendo ao chamado de sua Carta Testamento, impedem a tentativa de golpe em marcha.

A partir daí, ocorre uma aceleração da mobilização popular em torno das propostas do PTB que passa a representar a dimensão popular e trabalhista do legado de Vargas, sendo o partido que mais cresce no país de 54 a 64.

Jango, após ser Ministro do Trabalho de Vargas, destituído devido a uma campanha agressiva da elite liberal contra o aumento real do salário mínimo, assume em 1952 a presidência desse partido e ao lado das lideranças emergentes de Brizola e Roberto Silveira, elege-se sucessivamente, pelo voto direto e com votações expressivas, vice- presidente de Juscelino e de Jânio Quadros.

A afirmação da soberania nacional e das reformas estruturais associadas a pregação ideológica, a luta de massas e uma política de alianças centradas privilegiadamente nos interesses dos trabalhadores, torna o PTB – com o PCB na ilegalidade - o estuário natural do processo de conscientização do povo trabalhador, aglutinando, gradativamente, até 64, inúmeras lideranças sindicais e populares, políticos expressivos e intelectuais, além de se tornar um partido com grande capacidade de penetração e mobilização popular.

Em 1961, com a crise da renúncia de Jânio, ocorre a Campanha da Legalidade pela posse de João Goulart na presidência e mais uma vez o golpe é derrotado pela mobilização dos trabalhadores, estudantes, moradores das favelas, soldados do exército e da aeronáutica, marinheiros, oficiais legalistas, camponeses. Capitaneada por Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, que com sua coragem cívica conseguiu o apoio do III Exército à resistência democrática, essa campanha foi o catalisador que acelerou o despertar da consciência popular sobre os dois projetos de nação que se defrontavam há décadas.

De um lado um projeto reformista de desenvolvimento nacional voltado para a maioria que buscava a ruptura da dependência econômica em relação aos EUA e à Europa, que, ampliando as leis trabalhistas, a democracia e a participação do povo trabalhador na renda nacional, introduziu o movimento dos trabalhadores na política e garantiu a CSN e a Petrobrás apesar da resistência imperialista dos EUA. De outro lado, a resistência de nossa elite liberal e capitalista que defendia a "flexibilização" das leis trabalhistas, a abertura do país ao capital estrangeiro, uma democracia limitada ao processo eleitoral representativo e que tinha seus interesses e privilégios ameaçados pela luta dos direitos da maioria.

Essa tomada de consciência reflete-se no aumento das reivindicações trabalhistas e dos conflitos no campo pela reforma agrária, no aumento da movimentação dos estudantes, nas reivindicações de soldados e marinheiros pelo direito ao voto e ao estudo e no surgimento de várias organizações sociais e políticas como o Comando Geral dos Trabalhadores, as Ligas Camponesas, a Ação Popular oriunda da esquerda católica, a Política Operária, POLOP, organização marxista que surge a partir da iniciativa de jovens do PTB, do PSB e de intelectuais marxistas independentes, e estimula várias dissidências no PCB. Repercute também no PTB, levando a radicalização dos setores brizolistas que adotam um discurso revolucionário, nacionalista de esquerda e de crítica aos rumos vacilantes do governo Goulart, principalmente depois que o mesmo concilia com os golpistas e aceita a emenda constitucional que implanta o parlamentarismo e limita seus poderes presidenciais.

Porém, com o aumento da mobilização e da pressão popular e do fracasso do parlamentarismo, Jango consegue realizar o plebiscito para escolha definitiva entre parlamentarismo e presidencialismo, conseguindo maioria absoluta dos votos a favor do retorno ao presidencialismo. Com isso, retoma as bandeiras das reformas de base - constitucional, agrária, política, universitária e a proposta de plebiscito para aprovar as reformas. Aprova a lei da escala móvel de salários, cria o 13º salário, a aposentadoria dos trabalhadores rurais e a lei de remessas de lucros para o exterior. Para radicalizar ainda mais a oposição golpista, aumentava a unidade na luta dos lutadores e lutadoras das bases das organizações políticas e sociais que lutavam pelas Reformas de Base e as projeções eleitorais para as eleições de 1965 apontavam essas forças com provável maioria no Congresso Nacional e a possível vitória de Brizola como sucessor de João Goulart.

Tudo isso repercute na radicalização da estratégia de enfrentamento com o Governo Goulart dos donos do poder econômico do país: banqueiros, latifundiários e empresários aliados aos interesses imperialistas dos EUA. A conspiração interna e externa avança e se aprofunda. A oposição golpista mantém todas as opções abertas, desde a possibilidade de assassinato de Goulart até uma intervenção militar norte- americana, passando pelo golpe. Um golpe que já estava sendo implementado através da manipulação pelos meios de comunicação das noticias sobre as mobilizações populares e as greves e através de campanhas para construir um clima de medo na população, levando à confusão de importantes setores da classe média, estimulando marchas e manifestações desse setores contra o governo.

Entre seus interesses econômicos ameaçados e a democracia, a burguesia e o imperialismo não têm nenhuma dúvida: sacrificam a democracia no altar dos seus privilégios. Assim, antes que o povo trabalhador conseguisse aglutinar forças e experiência suficiente para que sua vontade, a da maioria, fosse cumprida, no dia 31 de março de 1964 ocorre o Golpe.

Algumas tentativas de defesa do regime democrático ainda foram tentadas mesmo antes do Golpe com o início da implantação dos grupos de 11 pelos brizolistas, que nesse momento influenciavam decisivamente as bases políticas dos principais partidos populares e de esquerda. Para se ter uma idéia, o jornal O Panfleto, porta-voz dessa iniciativa, vendia mais de 400 mil exemplares nos meses anteriores ao Golpe de 64. Quando ocorre o Golpe, houve tentativas de resistências como a de Darcy Ribeiro, Chefe da Casa Civil de Jango, que convoca representantes do PCB, a seu gabinete e lhes propõe conseguir armamento para a resistência armada e a de Leonel Brizola que propôs ao presidente reeditar a campanha da Legalidade de 1961.

Os golpistas utilizavam-se do discurso de que seu objetivo não era a implantação de uma ditadura, mas se resumiria em afastar o espectro do comunismo que rondava o país e que as eleições seriam realizadas "normalmente" em 1965. O golpe visava única e exclusivamente a derrubar o governo Jango, que no seu entender era o responsável pelo ascenso vertiginoso das mobilizações e reivindicações populares interpretadas como agitação política comunista, e retirar da cena política o povo trabalhador e suas lideranças.

Darcy Ribeiro caracterizou de forma lapidar a derrubada de Jango: O governo Jango não foi derrubado pelos seus erros, mas pelas suas virtudes. E a principal virtude de Jango era o compromisso com uma prática popular e democrática que visava governar de acordo com os interesses da maioria.


Hoje, passados 48 anos do Golpe de 64, assistimos a um vigoroso debate nos meios de comunicação sobre a Comissão da Verdade e a Lei de Anistia. Ao mesmo tempo estudantes e velhos combatentes contra a ditadura civil militar organizam manifestações de denuncia dos civis e militares que apoiaram o golpe e a prática da tortura e do assassinato.

Nesse contexto surgem na imprensa reportagens e textos de opinião que apontam para uma tentativa de golpe na memória do povo trabalhador! Apontam que o Golpe Militar de 64 se resumia a uma tentativa de impedir a “implantação do comunismo no Brasil” ou em versões mais elegantes e oriundas da academia, que todos os atores políticos no período histórico do Golpe não tinham compromissos com a manutenção da democracia ou que o golpe de 64 teve apoio da sociedade.

Esse discurso visa legitimar o golpismo como uma medida possível contra qualquer tentativa de retomar o fio da história cortado violentamente em 64. A ditadura política acaba em 1985. Todavia, o espectro do golpe paira permanentemente sobre a frágil democracia representativa brasileira para garantir a manutenção do modelo econômico capitalista dependente aprofundado a partir de 64 e que mantém os privilégios de uma minoria. Por isso, vemos governos hegemonizados por frentes de partidos políticos oriundos da esquerda que, na sua política cotidiana, não apostam em mobilizar e organizar massivamente o povo trabalhador em torno as reivindicações históricas de reformas agrária, urbana, bancária, educacional etc. Quaisquer mobilizações políticas de massa contrárias a essa realidade não são um objetivo político pois, de acordo com esses setores, o Brasil não pode viver aventuras ou agitações sociais que poderiam despertar o golpismo e repetir a história.

Assim, o objetivo é que o golpe de 1964 não seja reconhecido como o aprofundamento radical de um padrão de acumulação capitalista em detrimento dos trabalhadores, projeto que fracassara em 1954 e 1961 devido à insurreição popular nascida do suicídio de Getúlio e do movimento pela Legalidade, como vimos anteriormente.

Na realidade o objetivo dessas reportagens e textos de opinião é legitimar o golpe civil-militar como uma resposta preventiva inevitável ao “golpe comunista” em preparação, uma natural intervenção corretiva de objetivos democráticos para pôr fim à "bagunça" popular. Nessa ótica, as mobilizações populares são mostradas, aberta ou sub-repticiamente, como uma "grande baderna". As manifestações só aparentam consciência quando estão a favor do golpe. A burguesia e o imperialismo são legitimados em sua responsabilidade política pelo golpe e a ditadura é transformada em uma iniciativa essencialmente militar com apoio da sociedade.

"Veja as coisas como elas são", desafia Chico Buarque, num poema memorável. O Golpe de 64 não aconteceu "porque não tinha outro jeito" ou porque "a democracia não era valorizada por ambos os lados".

A memória, além de ser um ponto de partida para os navegantes com desejo de vento, como afirma Galeano, também é um espaço das classes em luta sujeito a golpes, resistências e revoluções. O momento histórico do golpe de 64 está repleto de oportunidades perdidas e alternativas recuperáveis. A essa tentativa de golpe na memória que visa a legitimar a historiografia liberal e capitalista do golpe de 64 devemos contrapor a resistência militante da memória popular e a resolução revolucionária de retomar corajosamente o fio da história de lutas de nosso povo trabalhador interrompido com o golpe de 64.

Comentários

Postagens mais visitadas